Em razão do lançamento tardio da Crônica da semana passada e porque esta matéria trata de assuntos nos quais a DRCNet está ou planeja estar envolvida diretamente, o reimprimimos na edição desta semana.
Umas 15 a 20 milhões de pessoas foram presas por acusações de delitos de drogas e submetidas à mercê do sistema de justiça penal nas duas últimas décadas. Mas, graças aos guerreiros antidrogas do Congresso, os castigos que os infratores da legislação antidrogas freqüentemente enfrentam se estendem muito além dos muros da prisão ou do gabinete do oficial da condicional. Uma série de leis federais que procuram ostensivamente reduzir o consumo de drogas impede as pessoas com condenações por delitos de drogas de conseguirem acesso aos benefícios e serviços federais. Estas leis causam um impacto desproporcional sobre os membros mais fracos da sociedade - os pobres, as pessoas de cor, as mulheres e as crianças - e, em alguns casos, nem mesmo requer que uma pessoa seja condenada realmente por um delito de drogas para ser punida.

não é preciso uma condenação para ser despejado das moradias públicas por drogas - mesmo pelas alheias
Uma série crescente de grupos e indivíduos que vai da Ordem dos Advogados dos EUA, organizações dos direitos à previdência social, grupos da saúde pública e que lidam com a dependência, organizações de reforma das políticas de drogas a oficiais eleitos pediram mudanças nestas leis ou sua total revogação, dizendo que são cruéis, desumanas, contraproducentes e que equivalem a "duplo ajuizamento" para os infratores da legislação antidrogas que tentam virar membros produtivos da sociedade.
"Sentimos que estas leis são discriminatórias e tendem a se concentrar em uma doença ao contrário de um crime", disse Alexa Eggleston do Legal Action Center, um dos principais grupos no movimento para ajustar aquelas leis. "Também achamos que se você tem uma condenação, você deveria poder cumprir a sua sentença, sair e retomar a sua vida. Dizemos que queremos que as pessoas se abstenham, recebam tratamento, conquistem um trabalho, consigam moradia, mas então montamos todas estas barreiras e obstáculos que parecem feitas para impedi-las de seguirem adiante. Estas proibições para toda a vida destroem muito o poder das pessoas de se reintegrarem à sociedade e de tocarem a vida delas como cidadãs produtivas".
"Estas leis discriminatórias representam barreiras incríveis em termos de pessoas que estão dando prosseguimento às vidas delas, por isso são parte da nossa plataforma pela mudança", disse Pat Taylor, diretora da Faces and Voices of Recovery, uma aliança nacional de indivíduos e organizações comprometidos em garantir os direitos das pessoas com dependências. "Se não der para conseguir moradia, conseguir um emprego, fica muito difícil arrumar a vida".
"Um dos problemas que enfrentamos constantemente é o de ajudar as pessoas que foram condenadas por um delito de drogas", disse Linda Walker do All of Us or None, uma iniciativa da Califórnia que organiza presos, ex-presos e criminosos a combaterem a discriminação que eles experimentam por causa de suas condenações por delitos de drogas. "Por que fazem perguntam sobre isso nas candidaturas a empréstimos estudantis? Por que enfrentam proibições contra a moradia pública para toda a vida? São pessoas que cumpriram as suas sentenças, pagaram a sua restituição, seguiram adiante e amadureceram, e agora, por causa de algo que fizeram quando tinham vinte anos não podem ter acesso à moradia para idosos?"
Walker sabe alguma coisinha sobre a situação do ex-condenado. Ela foi condenada não por um delito de drogas, mas por um crime cometido no esforço para conseguir o dinheiro para comprar drogas. Embora o status de Walker como infratora que não têm nada a ver com os delitos de drogas signifique que ela não é impedida de receber cupons alimentícios nem de ter acesso à moradia pública, ela ainda usa a letra escarlate do ex-condenado. "Atualmente, trabalho em um gabinete municipal e toda vez que me candidato a uma promoção, isto vira um problema", explicou. "Estive fora do sistema de justiça penal por 14 anos, mas ainda me dizem que em razão dos meus antecedentes criminais não posso ser considerada para este ou aquele emprego".
Estas leis de "duplo ajuizamento" foram formuladas nos últimos 20 anos como parte do avanço da guerra contra as drogas e incluem:
A Lei Antiabuso Químico de 1988 [The Anti-Drug Abuse Act of 1988], segundo a qual as agências municipais de moradias e outras que supervisionem a moradia fornecida pela União têm a discrição de negar abrigo quando qualquer membro do lugar consumir álcool de maneira que interfira na "saúde, segurança ou o direito à fruição pacífica" das dependências dos outros inquilinos, use drogas ilegalmente ou seja condenado por atividade criminosa relacionada às drogas. As pessoas que forem despejadas ou que receberem um não de acordo com a lei são cortadas do benefício federal de moradia por três anos.
De acordo com um relatório do GAO sobre o funcionamento das leis feitas para negar benefícios aos infratores por delitos de drogas, uns 500 indivíduos ou famílias foram despejados segundo a lei em 13 grandes agências de moradia pública que o GAO pesquisou em 2003 e cerca de 1.500 foram recusadas por 15 agências no mesmo ano. A agência informou que as agências de moradia pública em todo o país despejaram cerca de 9.000 pessoas e negaram admissão a outras 49.000 em função de condenações criminais em 2003, com as condenações por delitos de drogas consistindo em um subconjunto desconhecido, porém considerável, daquelas. Embora dados concretos sejam difíceis de conseguir, parece claro que dezenas de milhares de pessoas são afetadas adversamente pelas leis que impedem os infratores por delitos de drogas de receberem benefícios como a moradia pública ou a assistência da Seção 8.
As mudanças subseqüentes nas leis federais e as regras conjuntas consagraram a discrição das autoridades dos programas de moradia e foram mais solidificados em uma decisão de 2002 da Suprema Corte. Nesse caso, a corte alta manteve o direito das autoridades do programa de moradia pública de Oakland a usarem a discrição delas para desalojarem a antiga inquilina Pearlie Rucker de 64 anos, a sua filha adolescente com problemas mentais, seus dois netos e um bisneto depois que a filha foi pega com cocaína a três quarteirões do prédio.
Só uma classe de infrator por delitos de drogas é especificamente proibida de obter moradia pública - as pessoas que foram condenadas por prepararem metanfetamina. Eles, junto com o outro grupo demonizado favorito da sociedade, os infratores sexuais registrados, são os únicos grupos de infratores destacados para as proibições.
A Negação do Programa de Benefícios Federais de 1990 [The 1990 Denial of Federal Benefits Program], a qual permite que os juízes estaduais e federais neguem aos infratores da legislação antidrogas benefícios federais como subvenções, contratos e licenças. De acordo com o GAO, umas 600 pessoas ao ano são afetadas por este programa nos tribunais federais.
A Seção 115 da Lei de Responsabilidade Pessoal e de Reconciliação com a Oportunidade de Trabalho de 1996 [Personal Responsibility and Work Opportunity Reconciliation Act of 1996], segundo a qual as pessoas condenadas por uma infração são submetidas a uma proibição de receber assistência em dinheiro e cupons alimentícios para a toda a vida. As condenações pelos demais crimes, inclusive o assassinato, não resultam em perdas de benefícios. A Seção 115 afeta uma estimativa de 92.000 mulheres e de 135.000 crianças.
A lei de reforma da previdência social contém uma disposição a qual permite que os estados escolham não fazer isso, apesar de que mesmo se eles não agirem, as proibições para toda a vida continuam em vigor. Em 14 estados em que os legisladores não agiram, os criminosos por drogas ainda enfrentam a proibição federal, embora as suas sentenças possam ter acabado há muito tempo e suas infrações tenham décadas de idade. Mas, em 36 estados, os legisladores tomaram medidas para limitar a proibição de alguma maneira, permitindo que os infratores da legislação antidrogas recebam a assistência pública se cumprirem certas condições, como participar de programas de desintoxicação química ou alcoólica, cumprir um período de espera, se suas condenações foram só por porte, ou outras condições.
A Lei Pública 104-121, que impede o acesso à Renda Suplementar da Previdência Social (SSI) e a Renda da Previdência Social por Invalidez (SSDI) para as pessoas cujas incapacitações principais foram por alcoolismo ou dependência química. Esta lei de 1996 substituiu um programa de "Abuso Químico e Alcoolismo" da SSI de 1972 que permitia que as pessoas em tratamento químico, o qual era obrigatório, designassem um beneficiário para administrar os benefícios a fim de garantir que não fossem usados para comprar drogas ou álcool. A Administração da Previdência Social estima que mais de 123.000 pessoas perderam os benefícios quando esta lei entrou em vigor, enquanto que outras 86.000 conseguiram retê-los em virtude da idade ou por serem reclassificadas em uma categoria diferente de incapacitação principal.
O dispositivo antidrogas da Lei de Ensino Superior (HEA) de 1998 [The 1998 Higher Education Act's drug provision] (também conhecida como a "Pena de Eliminação do Auxílio"), que declara que as pessoas com condenações por delitos de drogas não podem receber auxílio financeiro federal durante um período de tempo determinado pelo tipo e número das condenações. Esta lei não se aplica aos outros com condenações, inclusive as infrações por embriaguez ao volante, crimes de sangue e outras infrações criminais. No ano passado, a disposição foi reformada para limitar a sua aplicabilidade às infrações cometidas enquanto um estudante estiver matriculado na faculdade e estiver recebendo auxílio financeiro. Desde que a lei entrou em vigor em 2000, negou-se o auxílio financeiro estudantil a umas 200.000 pessoas.
O Crédito de Bolsas, que estipula abatimentos no imposto de renda para as pessoas que pagam cotas de matrícula e tarifas. O crédito permite que os contribuintes peguem um crédito máximo de $1.000 para a cota de matrícula e créditos adicionais para gastos relacionados. Especificamente, exclui o crédito para os estudantes que foram condenados por um delito de drogas durante o ano fiscal em questão ou que tiveram suas contas pagas pelos seus pais.
Embora o GAO observe que "negaram-se benefícios pós-segundo grau, moradia pública ou licenças e contratos seletos a milhares de pessoas como conseqüência das leis federais que estipulam a negação de benefícios aos infratores por delitos de drogas", isso é diminuir o dado real, que, de acordo com os seus próprios números, está na casa das centenas de milhares. Além do mais, o relatório do GAO não calcula o número de pessoas que simplesmente não se candidataram aos benefícios de moradia, previdência social ou aos empréstimos estudantis porque sabiam ou achavam que eram inelegíveis.
"O enfoque de todos estes dispositivos é o de punir as pessoas que cometeram um erro ao invés de ajudá-las a encontrar tratamento", disse Donovan Kuehn, porta-voz da NAADAC, a Association of Addiction Professionals, o maior agrupamento de conselheiros, educadores e profissionais da saúde que lidam com as questões da dependência do país. "Como profissionais do tratamento da dependência, temos muitas esperanças que, com uma mudança na liderança no Congresso, possamos começar a ajudar as pessoas a encontrarem soluções pessoais para os seus problemas em vez de penalizá-las".
Kraig Selken, graduando do curso de história na Universidade Estadual Nortista em Aberdeen, Dakota do Sul, gostaria de ver que isso acontecesse. Ele conhece em primeira mão o ardor da disposição antidrogas da HEA. Após ser preso com uma pequena quantidade de maconha, Selken pagou a multa dele e passou pelo tratamento químico ordenado pelo tribunal. Ele pensava que pagara a dívida dele com a sociedade. Não foi senão até que Selken começou a estudar a disposição antidrogas da HEA depois de sua condenação que percebeu que o seu castigo não tinha acabado. Em razão de sua condenação por um delito menor relacionado à maconha, ele ficou inelegível para a assistência financeira estudantil por dois anos.
"Ironicamente, hoje era dia de pagamento na faculdade. Tive que dar o meu próprio cheque em vez de pagar com os empréstimos estudantis", disse Selken à Crônica na semana passada. "A falta de acesso aos empréstimos estudantis me afetou muito", disse. "No semestre passado, a única razão pela qual pude arcar com a faculdade sem os empréstimos foi porque a minha bisavó morreu e me deixou um pouquinho de dinheiro. Do contrário, não teria podido fazer o curso".
Selken disse que planeja entrar na faculdade de direito, mas embora seja elegível para o auxílio financeiro de novo, ainda terá que pagar. "Ainda terei que responder 'sim' no formulário do auxílio financeiro federal e terei que passar por toda a provação de fornecer a documentação para mostrar que sou elegível novamente".
A disposição antidrogas do HEA, de autoria do importante guerreiro antidrogas do Congresso, o Dep. Mark Souder (R-IN), pode ser a primeira barreira à reintegração dos infratores por delitos de drogas a cair. A disposição entrou em vigor em 2000, mas em vista da oposição crescente liderada pela Coalition for Higher Education Act Reform (CHEAR), Souder bateu em retirada e a lei foi emendada no ano passado para contar somente as infrações cometidas enquanto o estudante estava na faculdade e recebia o auxílio financeiro. Mas, essa ação não silenciou os pedidos de revogação total, e com a maioria democrata no Congresso, os defensores esperam finalmente fazer o que desejam.
"Estamos muito otimistas que esta pena prejudicial e discriminatória finalmente será revogada por este Congresso", disse Tom Angell, diretor de comunicação do Students for Sensible Drug Policy, um dos grupos mais ativos na coalizão CHEAR.
"Há tanta coisa errada na disposição antidrogas da HEA que nem sei por onde começar", disse o diretor-adjunto da Rede Coordenadora da Reforma das Políticas de Drogas, David Guard, coordenador da CHEAR. "O dispositivo antidrogas prejudica desproporcionalmente os filhos das famílias de baixa e média rendas - as mesmíssimas pessoas que a HEA deveria ajudar - e afeta desproporcionalmente as minorias, que, embora usem drogas em índices iguais aos dos brancos, têm muito mais probabilidades de serem presas. Os estudantes que são forçados a sair da faculdade por perderem o seu auxílio financeiro têm menos chances de voltar à faculdade", disse Guard. "Vamos esperar que o Congresso tome providências para revogá-la neste ano", disse.
A disposição antidrogas da HEA também prejudica os estudantes que procuram auxílio financeiro estadual. Embora os estados não sejam obrigados a seguir cegamente as normas federais de auxílio financeiro quando se trata dos infratores da legislação antidrogas, muitos fazem isso, muitas vezes simplesmente porque é conveniente. Em pelo menos um estado, Maryland, trâmites legislativos estão em curso para acabar com o eco reflexo da pena federal do estado.
Também há uma possibilidade de progresso neste ano no programa de cupons alimentícios, o qual, como parte da aprovação do projeto sobre os alimentos, será ponderado no início deste ano. De acordo com o Food Research and Action Center, os Comitês de Agricultura da Câmara e do Senado começarão logo as audiências sobre o Título IV do projeto sobre os alimentos, que inclui os cupons alimentícios, e o centro está abrindo passo para a renovação das discussões acerca da ajuda aos estados que não descartaram a proibição.
Embora fosse politicamente oportuno tentar punir mais alguns dos indivíduos mais desprezados da sociedade - os usuários e infratores da legislação antidrogas -, estudos sérios sobre o impacto destas medidas levaram a pedidos de sua reforma ou revogação. Em 2003, a coalizão Join Together, que, apóia os esforços comunitários para avançar as políticas eficientes para o álcool e as drogas, a prevenção e o tratamento, reuniu um painel prestigioso sobre as políticas, dirigido pelo ex-prefeito de Baltimore, Kurt Schmoke, para examinar as formas de acabar com a discriminação contra os usuários de drogas.
Em seu relatório final, esse painel fez uma série de recomendações. Elas incluem:
- As pessoas com condenações por delitos de drogas, mas sem consumo atual de drogas, não deveriam enfrentar nenhum obstáculo para receberem os empréstimos estudantis, outras subvenções, bolsas ou acesso aos programas de treinamento do governo;
- As pessoas com condenações não-violentas por drogas, mas sem consumo atual de drogas, não deveriam ser proibidas de receber assistência em espécie e cupons alimentícios;
- As agências de moradias públicas e os provedores da Seção 8 e demais programas de moradia proporcionada pela União deveriam usar a discrição dada a eles na lei de moradia pública para ajudarem as pessoas a se tratarem, ao invés de impedir essas mesmas pessoas e suas famílias permanentemente de conseguirem abrigo;
- As pessoas que são inválidas em conseqüência de sua doença com o álcool ou outras drogas deveriam ser elegíveis para a Renda da Previdência Social por Invalidez e a Renda Suplementar da Previdência Social.
A Ordem dos Advogados dos Estados Unidos também deu a sua contribuição contra o duplo ajuizamento dos infratores da legislação antidrogas e dos consumidores de drogas. Em uma resolução de 2004, o grupo adotou recomendações com base naquelas do painel de políticas da Join Together. Como a Join Together, a ABA pediu que o alcoolismo e a dependência química fossem considerados doenças crônicas tratáveis e questões de saúde pública. Também instou que "as pessoas que procuram tratamento ou recuperação do álcool ou demais doenças por drogas não deveriam estar sujeitas a proibições legalmente impostas ou demais barreiras com base somente em suas dependências. Tais interdições deveriam ser identificadas e eliminadas".
Embora um movimento para desfazer as leis e programas federais que criminalizam duplamente os infratores da legislação antidrogas ou os usuários de drogas esteja crescendo e conte com apoio considerável entre alguns congressistas democratas, com a exceção da HEA, pouco progresso foi feito na sua redução, apesar de que isso possa mudar agora que os democratas têm o controle do Congresso.
Para ter uma noção de como os congressos liderados pelos republicanos se sentiram acerca de repensar estas leis e programas punitivos, basta dar uma olhada no destino do projeto apresentado pelo Dep. Bobby Scott (D-VA) e proposto conjuntamente por outros 10 legisladores, inclusive o único deputado republicano, Ron Paul do Texas, na esteira do Furacão Katrina. Esse projeto, que teria suspendido temporariamente as disposições que negam benefícios federais aos consumidores e infratores da legislação antidrogas nas áreas afetadas pela tempestade, não chegou a lugar nenhum.