Contratos sobre a dor. Contratos de terapia da dor. Contratos de medicação. Contratos de opiáceos. Acordos sobre a dor. Têm nomes diferentes, mas todos significam a mesma coisa. Um acordo assinado entre médico e paciente que estipula as condições sob as quais o paciente receberá analgésicos prescritíveis para alívio das dores crônicas. (Para ver um contrato da dor padronizado, clique aqui.)

comprimidos de Oxycontin
Para alguns das dezenas de milhares de estadunidenses que padecem de dores crônicas, os analgésicos, como o Oxycontin ou a metadona, proporcionam o único alívio a uma vida de agonia e invalidez. Mas, com a campanha corrente do Gabinete de Política Nacional de Controle das Drogas contra o abuso de drogas prescritíveis e a operação corrente da Administração de Repressão às Drogas (DEA) contra os médicos que ela acha que estão prescrevendo opiáceos fora dos limites da prática médica aceita, o
establishment médico tem cada vez mais cautela com os pacientes e o tratamento adequado da dor é um verdadeiro problema para inúmeros estadunidenses.
Nos últimos anos, os médicos e hospitais têm se dirigido cada vez mais aos contratos da dor como forma de negociarem os imperativos conflitantes da terapia da dor e da repressão legal. Tais contratos incluem tipicamente dispositivos que exigem que os pacientes prometam que vão usar as drogas apenas como lhes foi ordenado, que não vão procurar recargas nem sucedâneos para as drogas perdidas ou roubadas, que não vão usar drogas ilegais e que concordarão com os exames toxicológicos. E, como diz o contrato relacionado acima, “Eu entendo que este fornecedor pode parar de prescrever as medicações se... o meu comportamento for inconsistente com as responsabilidades delineadas acima, o que também pode resultar no impedimento de receber cuidados médicos desta clínica”.
“Os acordos sobre a dor são parte do que chamamos consentimento informado”, disse o especialista em terapia da dor e tratamento químico do Norte da Virgínia, o Dr. Howard Heit. “Antes que eu escreva, eles estabelecem o que farei por você e quais são as suas responsabilidades como paciente. É um acordo a fim de começar um relacionamento bem-sucedido que defina as responsabilidades mútuas de ambas as partes. Mais e mais estados estão sugerindo que usemos os acordos como parte do plano de tratamento com medicações classificadas. Tais acordos não são punitivos; eles protegem ambos os lados de maneira funcional”.
Se Heit vê isso como um plano cooperativo, outros discordam. “Em realidade, este é um indício de como o regime atual de repressão da DEA tem criado uma relação de adversidade entre os pacientes e os médicos na qual os médicos sentem a necessidade de recorrer a contratos ao invés de trabalharem cooperativamente com os pacientes”, disse Kathryn Serkes, porta-voz da Association of American Physicians and Surgeons (AAPS), que tem sido uma crítica feroz da criminalização dos médicos pelas suas práticas prescritivas. “Os contratos da dor são uma ferramenta para proteger os médicos dos processos criminais. Ele pode dizer: ‘Fiz o tratamento de boa fé, eis o contrato assinado pelo paciente, e ele o infringiu’. É muito ruim que vivamos em um ambiente tão perigoso para os médicos e que eles se sintam compelidos a recorrerem a isso”, disse ela à Crônica.
“Não se pede aos pacientes que assinem contratos para receberem tratamento para as demais doenças”, observou Serkes. “Não fazemos contratos para o câncer. É uma situação muito infeliz, mas é compreensível. Embora tenha simpatia pelos pacientes, posso ver ambos os lados nisto”, disse ela.
“Não há provas de que estes contratos sobre a dor façam algum bem a qualquer paciente”, disse o Dr. Frank Fisher, um médico californiano que já foi acusado de homicídio doloso por prescrever analgésicos. Ele foi completamente exonerado anos depois das refregas legais pelas acusações progressivamente menos e menos sérias as quais os procuradores tinham sido forçados a rebaixar o caso deles. “O motivo pelo qual os médicos estão usando os contratos é para se protegerem das autoridades reguladoras e agora virou uma convenção fazer isso. Eles dirão que é um tipo de documento de consentimento informado, mas, essencialmente, é uma mentira. São um artefato de um sistema regulamentar zeloso demais”, disse ele à Crônica.
“Quando isto começou, os médicos os usavam com os pacientes problemáticos, mas agora mais e mais médicos e hospitais estão fazendo isso rotineiramente”, acrescentou Fisher. “Mas, a idéia de que os pacientes devam ter que assinar um contrato como esse ou se submeterem a exames toxicológicos forçados é uma ab-rogação da ética na medicina. Nada na relação permite a coerção e isso é realmente o que isto é”.
Os contratos sobre a dor nem conseguem proteger os médicos, observou Fisher. “Quando eles processam os médicos, podem usar o contrato sobre a dor para mostrar que não obedeceu a este ou esse dispositivo, como expulsar os pacientes que não obedeciam. Tudo isto é uma bagunça”.

Michael Krawitz (foto cortesia Drug Policy Forum da Virgínia)
É uma bagunça real e dolorosa para um de veteranos que tentam lidar com a dor crônica através da Administração dos Veteranos – e são as disposições sobre os exames toxicológicos e o consumo de maconha que estão causando problemas. Michael Krawitz é um veterano da Força Aérea que foi ferido em um acidente em Guam há duas décadas que lhe custou seu baço, pâncreas e parte do intestino dele. Krawitz também sofreu uma fratura na parte superior do olho esquerdo dele, recebeu um quadril direito artificial e passou por 13 cirurgias desde então. Ele estivera recebendo analgésicos no Hospital de Veterano na Virgínia, mas as coisas começaram a dar errado há um ano.
“No ano passado, me recusei a assinar o contrato para a dor que tinham acabado de introducir ali e cortaram os meus medicamentos porque me recusei”, disse Krawitz à Crônica. “Então, corrigi o contrato para apagar a parte sobre se submeter a um exame toxicológico e isso funcionou durante um ano, mas na última vez que fui admitido, eles me disseram que tinha que fazer um exame toxicológico e recusei-me novamente. Dei-lhes uma bateria de exames de um médico de fora, mas não uma busca ilegal de drogas. Aí foi quando o meu médico da AV me mandou uma carta nervosa dizendo que não ia receber os meus analgésicos”.
Krawitz deu a documentação de sua correspondência com a AV, assim como a sua denúncia ignorada até agora, ao conselho estadual de medicina. Quanto à AV, uma meia-dúzia de empregados da AV, que vão do defensor de pacientes de Krawitz e do médico dele ao pessoal das relações públicas e os consultores de terapia da dor, não respondeu as solicitações de entrevistas feitas pela Crônica.
Para Krawitz, que tem usado maconha medicinalmente para tratar uma doença ocular – ele até tem uma prescrição da Holanda --, mas que diz que não a está usando atualmente, é uma luta sobre princípios. “Não submeterei a minha urina a nenhum exame que não seja médico”, disse. “A AV não tem a autoridade para exigir a minha urina. É uma política arbitrária, aplicada arbitrariamente. O importante é que nós, os veteranos, nos sentimos muito maltratados por tudo isto. Alguns de nós sacrificamos membros pela liberdade e a democracia e agora a AV quer nos fazer urinar em uma garrafa para que consigamos os nossos analgésicos?”
A imposição dos contratos para a dor não vale para todo o sistema na AV. A diretiva de 2003 da Administração da Saúde dos Veteranos sobre o tratamento da dor observa que “a aderência ao acordo sobre os opiáceos, se usado” deveria ser parte da avaliação geral do paciente.
Krawitz está se preparando para entrar com uma ação judicial federal para fazer que a AV lhe dê o seu tratamento para as dores sem forçá-lo a passar pelos exames toxicológicos. Para o veterano do Tennessee, Russell Belcher, a luta está tomando um curso ligeiramente diferente. Belcher, cujo ferimento nas costas e fusão espinal de 1977 lhe fazia sentir tanta dor que não pôde trabalhar depois de 2000, teve seus analgésicos cortados pela AV depois que tirou positivo por maconha. Belcher disse que usava maconha para tratar a insônia e as dores crônicas que a AV não quis aumentar a sua dose de metadona.
“É uma surpresa parar mim que alguns veteranos não tenham se metido em atentados contra eles”, disse ele à Crônica. “Eles quase me provocaram a fazer isso. Parar mim, não assinar um acordo sobre o abuso químico está fora de questão. Se se assina um, te ferram, se não se assina um, te ferram. Reclamei durante meses da quantidade insuficiente da dose, mas eles me disseram que isso é tudo o que se consegue e se se tirar positivo por qualquer coisa te expulsam. Quando os médicos civis acham maconha em um exame, eles me disseram que prefeririam não fazê-lo porque ainda era ilegal, mas não me expulsaram do programa. Estava usando-a para fins medicinais. Tenho muitos problemas para dormir, câimbras que mais se parecem a esquartejamentos. Tive que parar de usá-la durante muito tempo em razão desta confusão com os exames toxicológicos, mas então não quiseram aumentar os meus remédios. Achei que tinha que fazer algo, é uma questão de autopreservação”, disse.
“A clínica da dor na AV me deu de alta dos cuidados deles e disse que o médico não ia mais me prescrever narcóticos a menos que eu participasse do programa de abuso químico”, prosseguiu Belcher. “Não vão se contentar até que passe 30 dias na unidade de desintoxicação”. Embora Belcher gostaria de se unir a Krawitz na ofensiva contra a AV, procura um médico privado entrementes.
Quando inquirido sobre a condição dos veteranos, o Dr. Fisher manifestou simpatia. “Eles fizeram que Krawitz assinasse um contrato sob coação com os exames toxicológicos forçados como condição do prosseguimento do tratamento dele”, apontou. “Isso viola os direitos básicos como o direito à privacidade. Não há suspeita de que seja um dependente. Eles querem tratar todos os pacientes como se fossem suspeitos e isso tem pouco a ver com como a natureza da relação entre médico e paciente deveria ser”.
O Dr. Heit, embora manifestasse menos simpatia que o Dr. Fisher, decididamente teve mais que a AV. Quando indagado sobre os casos dos veteranos, ele explicou que seria flexível, mas também insistiria que eles observassem os termos dos acordos deles. “Afinal, é preciso escolher se se quer fazer a terapia da dor com substâncias controladas legais ou se se quer usar substâncias ilícitas, mas não é possível escolher ambos”, disse. “Não discordo que a maconha possa ajudar, mas as normas dizem que isso é uma substância ilícita. Não posso continuar prescrevendo a alguém que está consumindo uma substância ilícita”.
E cá estamos. Os pacientes buscando alívio das dores se encontram com os imperativos da guerra às drogas – e todos nós perdemos.