A moradora de Nova Orleans, Pearl Bland, foi presa e encarcerada por acusações de porte de apetrechos para consumo de drogas em Agosto de 2005, poucas semanas antes que o Furacão Katrina devastasse a cidade. Ela se confessou culpada no dia 11 de Agosto e o juiz dela ordenou que fosse libertada no dia seguinte para que fosse posta em um programa de reabilitação química. Reconhecendo que Bland era indigente, ele suspendeu as multas e taxas, mas Bland não foi solta no dia seguinte. A Prisão Paroquial de Orleans (OPP) a manteve presa porque ela devia $398 em multas e taxas de uma detenção anterior. Ela tinha uma audiência judicial em Agosto e outra marcada para o dia 20 de Setembro na qual as multas e taxas muito provavelmente teriam sido suspensas.
Pearl não pôde comparecer à audiência de Setembro. Ao invés disso, quando chegou o Katrina, ela se juntou aos milhares de prisioneiros atolados no purgatório. Após ser espancada pelas suas companheiras na OPP enquanto os adjuntos encolhiam os ombros, Bland foi evacuada, primeiro para a prisão estadual de segurança máxima em Angola e, por fim, para uma cadeia na Paróquia de Avoyelles. Em Junho, ela contatou desesperadamente a American Civil Liberties Union (ACLU), que por sua vez contatou advogados junto à Clínica de Direito Penal da Universidade de Tulane, os quais conseguiram soltá-la no dia 28 de Junho. Bland não pôde comparecer à audiência de soltura dela, assim como não pode estar presente nas quatro audiências das semanas anteriores, porque os carcereiros dela não queriam entregá-la ao tribunal.
“Pearl Bland passou 10 meses em prisões por todo o estado em razão de $398 em multas e taxas que o juiz dela provavelmente teria suspendido se ela houvesse comparecido ao tribunal”, disse Tom Javits, advogado do Projeto Nacional de Prisões da ACLU. “Mas, por causa da tempestade e da resposta a ela, Bland teve que esperar meses para que tivesse a sua vez na corte, e apenas porque procurou ajuda”, disse ele à Crônica da Guerra Contra as Drogas.

o relatório da ACLU
Já seria ruim se Pearl Bland fosse uma exceção, mas infelizmente, o caso dela é típico do que aconteceu com muita gente azarada para estar atrás das grades quando o Katrina chegou ou para ser presa pouco tempo depois da tempestade. Como documentaram o Projeto Nacional de Prisões da ACLU e a
ACLU da Luisiana no seu relatório do início de Agosto, "
Abandoned and Abused: Orleans Parish Prisoners in the Wake of Katrina” [Abandonados e Abusados: Os Prisioneiros da Paróquia de Orleans Depois do Katrina], milhares de cidadãos de Nova Orleans sob custodia quando a tempestade atingiu o litoral foram deixados à própria mercê enquanto os guardas fugiam do nível crescente das águas. Desde então, aqueles presos têm sido espalhados ao vento, deixados sem defesa, os guardas abusaram deles e eles têm sido abandonados por um sistema de justiça que parece estar satisfeito ao esquecer-se deles. E com a reconstrução pós-Katrina levando uma forte marca de imposição da lei, eles foram somados por milhares, muitos deles presos por crimes triviais como cuspir na calçada, embriaguez em público e porte simples de drogas.
Um ano depois do Katrina, milhares de presos não viram nem advogado nem foram citados, nem sequer compareceram ante um juiz. Escandalosamente, ninguém tem uma contagem certa – ou se a tem, não a dizem. “Ninguém sabe os números”, disse a professora de direito Pámela Metzger, que dirige a Clínica de Direito Penal da Faculdade de Direito de Tulane e aqueles estudantes que foram às cadeias e prisões da Luisiana em busca dos presos do Katrina. “Quando pedimos à promotoria que nos ajude com isto, para que as pessoas possam ter advogados, eles dizem que não é trabalho deles. Só desde Junho, os meus estudantes conseguiram rastrear e soltar cerca de 95 pessoas”, disse Metzger. “Mas não temos nenhuma maneira de saber quantos estão na cadeia”.
Quando a Crônica fez a mesma pergunta ao diretor executivo da ACLU da Luisiana, Joe Cook, ele deu a mesma resposta. “Eu não sei qual é o número. Pergunte ao promotor”, disse.
A promotoria de Nova Orleans não atendeu as muitas chamadas em busca de informação sobre o número de pessoas presas antes ou depois do Katrina que ainda têm que ver um advogado ou ter uma audiência judicial. Igualmente, e isso talvez seja um indício do estado das coisas na defensoria pública, ninguém atendeu o telefone apesar de diversas ligações. (Isso não é bem verdade. Em uma ocasião, uma mulher atendeu, mas ela disse que era contadora e que não havia ninguém no escritório.)
As estimativas publicadas do número de presos de Nova Orleans aos quais se negou seus direitos básicos à defesa legal e a um julgamento ligeiro estiveram entre os 3.000 e 6.000.
Parte do problema é o colapso quase total do sistema de defesa dos indigentes na cidade. Já estava em péssima forma antes da tempestade e entrou em colapso junto com o resto do sistema de justiça criminal depois da tormenta. Mas, embora as autoridades fossem rápidas em consertar o aparato de repressão legal, foi preciso esperar até Junho para que os tribunais criminais começassem a funcionar, e a defensoria pública, que depende da arrecadação das multas para financiar as operações dela, não tinha dinheiro. Agora, quase três-quartos dos defensores públicos simplesmente foram embora apesar de serem necessários para representar quase 85% dos réus criminais da cidade.
A situação chamou a atenção do Departamento de Justiça dos EUA, que em um relatório lançado em Abril concluiu que: “As pessoas esperam na cadeia sem nenhuma acusação e os julgamentos não podem ser realizados; mesmo os réus que desejam se confessar culpados devem ter um advogado para que o juiz aceite o acordo. Sem os advogados de defesa dos indigentes, atualmente Nova Orleans sente falta de um verdadeiro processo de defesa, o processo para garantir que mesmo a pessoa presa mais pobre receba um acordo justo, que o governo simplesmente não pode enclausurar suspeitos e esquecer-se deles... para a vasta maioria dos indivíduos presos”, descobriu o estudo, “a justiça simplesmente não está disponível”.
A situação também está começando a irritar os juízes de Nova Orleans. Em Maio, o Presidente da Vara Criminal do Distrito, Calvin Johnson, emitiu uma ordem que exigia que todos os acusados de infrações de trânsito ou do código municipal fossem citados, em vez de encarcerados. A cidade tem “um número limitado de vagas na cadeia e não podemos enchê-las de gente acusada de infrações menores como a perturbação da ordem, a invasão de propriedade ou por cuspirem na calçada... Não estou exagerando. Havia gente na cadeia por cuspir na calçada”, reclamou.
Na semana passada, outro juiz da vara criminal de Nova Orleans, Arthur Hunter, virou notícia quando ameaçou começar a realizar audiências nesta semana para soltar alguns dos presos detidos durante meses sem advogados nem audiências judiciais. Isso deveria ter acontecido na terça-feira, mas não ocorreu. Ao invés disso, o Juiz Hunter adiou a audiência depois que os promotores apresentaram as suas preocupações.
Embora os distúrbios no sistema fossem inevitáveis depois do Katrina, Metzger da Universidade Tulane pôs parte da culpa na promotoria. “Eles tomaram decisões muito ruins e são impedidos por uma espécie de resposta reflexiva de que tudo tem que ser processado totalmente. Eles não procuram esclarecer os casos; ao invés disso, eles deixam que as pessoas esperem sem advogados até que estejam dispostas a se confessarem culpadas”, disse. “É uma forma de extorsão acusatória”.
Não são apenas as pessoas que estavam na cadeia quando chegou o Katrina, mas muitos daqueles presos desde então que desapareceram no gulag lodoso, disse Metzger. “Na semana passada, encontramos um homem que estivera detido na prisão de segurança máxima de Angola desde Janeiro. Ele foi pego por porte de drogas, o seu único antecedente era por maconha e ele esteve aguardando em uma das piores prisões no país sem nem sequer consultar um advogado durante oito meses”, exclamou ela. “Conseguimos um alvará de soltura. Ele deveria ter saído na terça-feira, mas ainda está na cadeia. Simplesmente não sabemos quantos mais há como ele”.
A promotoria não só não está cooperando, está muito obstinada, denunciou Metzger. “Entramos com um pedido de direito a julgamento ligeiro em nome de um homem chamado Gregory Lewis que já cumpriu 10 meses de uma contravenção de drogas com um máximo de seis meses. A promotoria combateu isso e a moção dela dizia na verdade que, vou citá-la, ‘Não é insensato deter supostos viciados em drogas na cadeia durante mais tempo que as outras pessoas; isso permite que as drogas mortíferas saiam dos metabolismos delas’”, disse ela.
A moção da promotoria se referia obliquamente à desintoxicação, o que é irônico dado que não existe tal instalação em Nova Orleans. “Não há nenhum leito de desintoxicação em toda a cidade”, disse Samantha Hope da Hope Network, um grupo que busca financiamento privado para abrir um centro de tratamento e recuperação no coração da cidade. “A maioria das pessoas na OPP agora é gente que não pôde ter acesso ao tratamento de um problema com o álcool ou as drogas. Assim têm sido as coisas desde o princípio”, disse ela à Crônica. “Em vez de criminalizar as pessoas que têm problemas com o álcool ou as drogas, precisamos encontrar uma maneira de dar-lhes apoio. Confrontar o nosso sistema correcional devorador de dinheiro, a nossa rede conservadora e o racismo, isso é que são elas”.
Os estudantes de Tulane entraram com alguns casos de julgamento ligeiro, mas nem todos tiveram sorte o bastante para terem um estudante de direito de Tulane trabalhando no caso deles para que possam abrir um pedido de julgamento ligeiro. “A fim de entrar com uma moção para julgamento ligeiro, é preciso ter um advogado e milhares ainda nem têm defesa”, explicou Cook da ACLU da Luisiana. “O sistema de defesa dos indigentes estava falido muito antes do Katrina e agora é um completo desastre”, disse ele à Crônica.
Os presos da guerra às drogas são um número considerável, porém desconhecido, daqueles que cumprem “Katrina time”, disse Cook. “Definitivamente, é uma proporção considerável deles”, disse, “mas muitos deles nem sequer foram acusados formalmente. Em Nova Orleans, como na maior parte das grandes áreas urbanas, provavelmente é seguro dizer que uma pluralidade de detenções criminais mantém relação com as drogas”.
Há soluções, mas não virão facilmente. “Precisamos ter uma defensoria pública que seja financiada com dinheiro seguro e previsível”, recomendou Metzger. “Temos que ir além da confiança nas multas para financiar este escritório. Se houvéssemos tido defensores públicos, teria havido alguém atento para registrar os abusos”, disse ela.
“Segundo, precisamos ter promotores que entendam as suas obrigações para com a comunidade”, prosseguiu Metzger. “O trabalho deles não é simplesmente conseguir condenações, mas fazer justiça, e o que isso significa variará de acordo com os fatos e circunstâncias individuais. O que a justiça pós-Katrina exige não é o que a justiça exigia antes do Katrina. Se você estivesse vivendo em Nova Orleans no outono de 2005 e não estivesse bêbado ou drogado, provavelmente estava com um problema. Todos estavam medicados ou se automedicando”.
Cook tinha a sua própria série de recomendações para um conserto. “Primeiro, ligamos o aquecimento. Fiz uma visita ao promotor nesta semana e lhe pedi que acelerasse os processos”, revelou. “Queremos garantir que exista um plano coordenado de evacuação de emergência para todas as prisões e cadeias e pedimos à divisão de direitos civis do Departamento de Justiça que dê uma olhada no que aconteceu na OPP e desde então. Parte dela examinará por que estas pessoas não tiveram advogados de defesa nem a vez delas na corte”.
Ligar o aquecimento é precisamente o que um grupo comunitário recém-formado está tentando fazer. E não estão objetivando somente os promotores e o sistema de defesa pública. “A polícia adotou um novo ponto de vista do que pertence à cidade agora e esse ponto de vista não inclui os negros pobres”, disse Ursula Price da Safe Streets, Strong Communities, um grupo que organiza as pessoas que estiveram na cadeia ou foram brutalizadas de qualquer outra forma pela polícia. A Safe Streets, Strong Communities está administrando duas campanhas, uma para fortalecer a defensoria pública de indigentes e outra para melhorar as condições na própria cadeia. “Eles dizem aos nossos membros que ‘você não deveria ter voltado, não queremos a sua laia aqui’”, disse ela à Crônica. “A raça é um problema, a economia é um problema e os nossos adolescentes estão suportando o pior de tudo. Eles sempre são assediados pela polícia”.
É uma questão de escolhas, disse Price. “Temos tantos policiais como antes da tempestade e metade do total de pessoas e acabamos de lhes dar um aumento. O departamento municipal de finanças gasta deliberadamente a vasta maioria do seu dinheiro em segurança pública, e, então, já não resta nada para os serviços sociais, que estão sendo sacrificados de propósito”, disse ela. “Mas, estou encorajada porque a comunidade está começando a perceber. Quando as pessoas descobrirem que estávamos gastando meio-milhão de dólares por semana na Guarda Nacional sem ter impacto nenhum, elas começarão a se mobilizar”.
Cook tinha uma lista completa de reformas necessárias, que vão da diminuição da população carcerária a parar a prática de usá-la para deter presos estaduais e federais, criar programas adequados de saúde e tratamento dentro da cadeia e diminuir o número de pessoas presas como detidas pré-julgamento. “Precisamos de remanejamento antes do julgamento, a reforma das fianças e citar e lançar políticas para diminuir a população carcerária”, debateu. “Precisa-se de vontade política para fazer isto. É um crime encarcerar uma criança quando há uma escolha e há muitas outras escolhas. E devemos tratar o abuso químico como questão de saúde pública, não como uma questão de repressão legal”.
As perspectivas parecem sombrias. “Vai ser necessária uma liderança esclarecida e vejo apenas muito pouca esperança disso”, disse Cook. “Mas não vamos desistir. O sistema estadual do juizado de menores está finalmente passando por reformas por causa da pressão das famílias e dos ativistas e acho que será necessário o mesmo tipo de esforço para consertar as coisas no tocante aos adultos e aqui em Nova Orleans, no nível paroquial. Isso já está acontecendo por aqui com a Coalizão de Reforma da OPP, o pessoal da Safe Streets e tudo isso”.
Mas falta muito para que isso aconteça em Nova Orleans.